quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Lições no silêncio dos atos

O meu pai fez anos ontem. Fez um bacharelato em economia; licenciou-se em história de arte e arqueologia; em jovem montou o próprio laboratório fotográfico em casa e transmitiu-me a mim a paixão pela fotografia; venceu campeonatos locais de ténis; pertence à federação portuguesa de tiro; venceu provas de arranque de motas; é quase imbatível no bilhar; é um apaixonado por carros desportivos e velocidade; aprendeu a fazer ilusionismo para entreter as minhas festas de aniversário mas investiu nisso com uma competência profissional; decorou a minha casa de uma ponta à outra, com um gosto e sensibilidade irrepreensíveis; acompanhou, com tanta dor quanto prazer, o próprio pai que morreu já com uma demência avançada; trata do nosso jardim de forma exímia e entretém-se a domar uma série de bichos esquisitos; aliás, quem sabe da ligação, conhecimentos e dedicação dele à bicharada tem tendência a perguntar-me se ele é biólogo.

Das coisas mais importantes que o meu pai me deu foi a certeza de que dentro de uma só pessoa cabe muita coisa.  Nunca me falou disto. Nunca formulou sequer uma frase semelhante à que escrevi acima. Diria até que tenho muito poucas conversas com o meu pai. Mas, no silêncio dos atos, falamos muito. E eu ouço muito através do exemplo.

Em momentos dramáticos sei que posso sentar-me ao lado dele e falar, falar, falar... Regra geral, com o meu pai, ao contrário do que se passa com a minha mãe, por exemplo quando estou fora as chamadas telefónicas baseiam-se em "Está tudo bem?", "Está", "Pronto, ainda bem, beijinho, tem cuidado!". E eu acho que é o que é preciso. Às vezes sinto que retirei algumas destas caraterísticas de ser esquiva e um pouco fugidia do meu pai. Outras, acho que retirei dele apenas o melhor: que é saber estar quando é preciso e que há relações que se alimentam de outras coisas que não a procura constante "Então?? Onde estás?? Que fazes?? Que vais fazer?? Que fizeste hoje??". Há relações que temos a certeza que estão lá e cortamos-lhe o acessório porque garantidamente o essencial já lá está. Mas talvez estas sejam precisamente as relações mais raras da nossa vida e que só existem com quem efetivamente é muito nosso e já trilhou toda uma história que, mesmo com poucas palavras, tem muito mais do que silêncio e vazio.

9 comentários:

  1. O teu Pai parece uma pessoa muito bonita :) parabéns!

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  2. Portanto... Parabéns ao teu senhor teu Pai e que vá contando muitos e com saúde! E preza-o que ele merece, pelo que escreves!

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  3. entre todos os teus posts que tenho lido, este.
    aplaudo de pé o teu pai.
    e aplaudo-te a ti, que és uma rapariga bem formada, bem-escrevente, consciente, racional.
    obrigado, foi muito bom ler isto, saber que existe um homem como o que descreveste, e que és filha dele.

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    1. É pá, Luís, este comentário é que foi bom. Foi um abraço à distância.

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  4. texto tão cheio de sensibilidade e português irrepreensível. parabéns por tudo; por um pai de excelência, pelo aniversário que comemorou e pela filha fantástica, que há de seguramente ter agarrado muito desse ADN.

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  5. pai fantástico, filha fabulástica ... ;) :*

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