domingo, 21 de outubro de 2012

Nem sei que lhe chame

Mas este post é parte do capítulo que me deu muitas voltas à barriga e que me lembrou como as palavras na educação de uma criança são uma ferramenta tão poderosa à qual desconhecemos o impacto na maior parte do tempo.

"(...) Em minha casa toda a gente falava baixo. A minha mãe dizia que a delicadeza é a coisa mais importante da vida. "Se fizeres felizes os outros, serás feliz também", dizia ela. Por isso, quando o meu tio começou a dar-me beijinhos na boca às escondidas, eu deixei. Das primeiras vezes virei a cara, disse que não queria, mas ele chamou-me de má, "menina má, pões triste o tio que gosta tanto de ti", e então eu deixei para não ser malcriada. Ele tinha uma boca grande, molhada, pegajosa como um polvo. Eu tinha quatro ou cinco anos. Depois começou a mexer-me no corpo, subia com os dedos por dentro das minhas cuecas e eu dizia "não gosto, tio, desculpe, não gosto, desculpe" e ele ria-se e dizia que não desculpava nada, que eu não tinha que gostar ou não gostar, que as meninas pequenas não têm opinião. A minha mãe dizia-me isto muitas vezes, que as meninas não têm opinião. Quando eu dizia que não gostava da sopa, ou que não queria ir a casa dos tios, por exemplo. Ou quando me levava às vacinas e doía. "Há coisas que fazem doer mas fazem bem aos meninos. Os crescidos é que sabem", dizia ela. Por isso, quando o meu tio começou a fazer-me doer eu não me revoltei. Queixei-me um bocadinho, chorei sem fazer barulho. Devia ir nos meus oito anos, nessa altura. (...)"

"A cabeleireira", Fica Comigo Esta Noite, Inês Pedrosa

15 comentários:

  1. Todo o conto é de uma inocência violentada que dói. Não só o assunto aqui em causa, mas todos os outros.

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  2. Já li vários livros onde são descritas situações semelhantes (li esse conto, inclusive), mas por mais "repetitivos" que sejam os argumentos destas histórias, nunca me deixam indiferente. Assusta-me saber estas passagens tão reais.

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  3. Mary, que texto tão, mas tão forte. Tocou-me mesmo. Infelizmente o que está escrito aqui e´stá-se a passar noutro sitio, noutra casa, talvez bem perto da nossa. É terrivel e assustador.

    Posso partilhar?

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  4. Tenho este livro na estante, mas ainda não o li. É impossível ler este trecho sem sentir uma espécie de revolta ou "não sei o que lhe chame"...

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  5. Que relato duro. Custa-me pensar que acontece mesmo, é impossível ficar indiferente.

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  6. Fiquei com um nó na garganta! Que excerto tão duro!! Até estou baralhada, sem saber muito bem o que escrever. Se há temas que me dão repulsa é esse! Só de ter lido esse bocadinho sinto-me enojada!!
    Que revolta!

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  7. Fiquei quase que paralisada. Tão forte o:

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  8. Não há palavras para descrever as sensações que este texto provoca... Horror, repulsa, nojo e todas essas palavras não parecem, nem todas juntas, conseguir descrever o assunto de que este texto trata!

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  9. Louco,
    em tão poucas palavras é provavelmente das melhores descrições.

    Uma Rapariga Simples,
    todo o conto é horrível e pronto, pondo as coisas em palavras simples. Horrível mesmo. Fiquei às voltas na cama uma hora depois de o ler à conta de o ter lido mesmo antes de fechar a pestana.

    Palavra Já Perdida,
    ai que vocês com poucas palavras estão a dizer tudo o que é preciso e atestar o poder que este texto de facto tem.

    J. Persoa,
    assustam-me muito todas as histórias que trazem uma verdade dolorosa de mais.

    Marta,
    apesar da resposta seguir muito a posteriori, claro que podes partilhar, nem sequer é meu! :)

    Jude,
    tira-o já da estante. Inês Pedrosa não é só alguém capaz de nos proporcionar boas leituras mas que nos ensina a escrever. Não por escrever coisas bonitas, mas por ter um poder incrível de não tornar nada previsível mas tudo muito cru.

    Carolina.,
    ou quem ficar indiferente tem alguma coisa de estranho.

    *S*,
    também fiquei assim, aliás bem vês que as minhas próprias palavras antes do texto são poucas e vazias de significado pensando no que estava a sentir.

    Ana,
    tira, já passou :)

    Maria.,
    mesmo, mas deixei-o aqui essencialmente porque embora não seja para ler todos os dias, de maneira nenhuma, pode ser importante lê-lo.

    Sara*,
    tal e qual, é um texto que mais do que poder ser descrito/apresentado/comentado é sentido, certo?

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  10. Eu gostei. Por causa dessa inocência que se manteve, apesar de tudo. É doloroso, muito mesmo. Ainda assim....

    Devo confessar que tinha um grande preconceito em relação à IP, mas depois desta experiência, fiquei fã. :)

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  11. Exatamente, ao contrário de Fernando Pessoa, não consigo intelectualizar a dor que sinto ao ler este texto, sinto-a apenas!

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